2º Domingo da Páscoa C: Jo 20, 19-31
A fé como experiência de tocar nas feridas.
Nesse 2o Domingo da Páscoa, o evangelho (João 20, 19- 31) revela que todas as vezes que nos reunimos no nome de Jesus, atualizamos aquele encontro dos discípulos e discípulas com o Ressuscitado. Eles e elas estavam em uma sala de portas fechadas, com medo dos sacerdotes do templo e doutores da Bíblia. Ainda em nossos dias, há muitas pessoas que, para viver o projeto de uma fé profética, precisam tomar cuidado e quase se encontrar clandestinamente para não serem reprimidos pelos que se consideram donos da religião. Isso ocorre com grupos cristãos que se sentem oprimidos ou ignorados por hierarcas e acontece no Brasil com grupos de espiritualidades afrodescendentes e indígenas
Conforme esse evangelho que lemos, hoje, naquele domingo, a pequena comunidade dos discípulos e discípulas de Jesus estava reunida de portas fechadas. Atualmente, é o mundo inteiro que vive de portas fechadas. Nossas cidades são marcadas pelos muros das casas, dos shoppings e dos edifícios nos quais as pessoas se aprisionam com chaves e senhas de portões eletrificados. Também nos bairros de periferia, as pessoas vivem com portas fechadas com medo de milícias e gangues. Os países fecham mais a mais suas fronteiras contra migrantes e refugiados. Vivemos em um mundo sob o domínio do medo.
A política internacional é dominada por guerras e conflitos. A economia é organizada para impedir milhões de pessoas a viverem uma vida digna e com direitos humanos reconhecidos. O Papa Francisco afirmava: “Esse sistema mata!”. Para triplicarem seus lucros e ampliarem sempre mais a sua riqueza e garantirem o seu domínio, a elite de menos de 1% da humanidade mantém bilhões de pessoas em situação de semiescravidão.
A boa notícia desse evangelho é que mesmo com todas as portas fechadas, Jesus Ressuscitado se deixa ver pelos discípulos e lhes traz a Paz, a alegria e a reconciliação para iniciar nova missão. Conforme o evangelho, o que, em primeiro lugar, o Ressuscitado mostra aos seus amigos e amigas são suas chagas. Não mostra um corpo glorioso e etéreo, mas sim as chagas da cruz. É o curador ferido. A ressurreição não elimina as feridas da vida. Revela que elas continuam, mas de certa forma vencidas. Assim, o Cristo Ressuscitado pede que vençamos o medo e a vergonha e aceitemos revelar nossas feridas interiores. Deixemos que os amigos e amigas possam tocar e cuidar de nossas feridas. Só quando assumimos nossas chagas e aceitamos que as pessoas que nos são próximas cuidem delas, é que podemos viver a experiência da ressurreição. Só assim, podemos anunciar um modo novo de viver ressuscitados e ressuscitadas. Assim, as chagas, do Ressuscitado e as nossas se tornam luminosas. É ao reconhecer Jesus vivo nas pessoas feridas, que os discípulos se enchem de imensa alegria, como aquela alegria que Jesus tinha prometido na última ceia: "Hei de vê-los (as) outra vez e, então, vocês se encherão de uma alegria tal que ninguém poderá roubar de vocês essa alegria" (Jo 16, 20).
Esse domingo é como o oitavo dia da ressurreição. Assim como Tomé era discípulo, mas não estava com o grupo no primeiro domingo, também nós não estávamos com a comunidade no Domingo da Ressurreição. Tomé nunca aceitou Jesus ter vindo a Jerusalém e o capítulo 11 do quarto evangelho deixa claro que ele tinha acompanhado Jesus até ali, mas quase como quem se sente forçado a vir. Acreditava em um Jesus, enviado de Deus, mas sem cruz.... E agora não acreditava mais. Os outros do grupo tinham medo. Tinham dúvidas. Não sabiam se acreditavam ou não, mas de qualquer modo, ficaram juntos em uma sala fechada... Tomé, não. A fé dele era individualista, era eu e Deus... Queria ser discípulo de Jesus, mas sem comunidade. Com os outros, ele não tinha compromisso de estar junto. Não previa cruz, chagas. (Só se eu tocar nas chagas dele, vou crer que isso é real).
No oitavo dia da ressurreição, portanto, no domingo de hoje, Jesus se deixa ver e se deixa tocar... Ao se mostrar aos discípulos, mesmo com portas fechadas, não mostra nenhuma luz especial. Não fala de vitória nenhuma. Não voa, nem parece ter nada de diferente... Mostra as chagas. E pede que Tomé toque em seu corpo ferido; veja o sangue ainda a correr na ferida que tem no peito. Só quando a gente tem coragem de mostrar as nossas feridas interiores e sociais, parece que a vida pode se recompor e se tornar nova. Assim, a gente aprende a ter empatia e compaixão para ver e tocar as feridas das pessoas.
No mundo atual, muitas pessoas creem em um Cristo aéreo, celestial e pouco humano. Precisamos testemunhar a fé em um Jesus histórico, real, com corpo e com chagas. Tocar nas chagas de Jesus é tocar nas chagas da humanidade hoje e ser capaz de reconhecer a presença do Espírito nas vítimas da sociedade atual. São tantas pessoas e tantas comunidades e mesmo povos, como o povo palestino, povos crucificados. Humanidade em chagas vivas. No Brasil, só irmãos e irmãs em situação de rua, temos mais de 330 mil pessoas. É diante do ser humano nu, ferido e sangrando, que, como Tomé, nos prostramos e dizemos: Meu Senhor e meu Deus!
As pessoas que, nesse momento, nos diversos serviços, vivem a solidariedade e cuidam dos outros tocam nas chagas de Jesus e testemunham ressurreição. Se não formos capazes de fazer isso diante das pessoas concretas, cada uma com suas feridas, não testemunhamos a ressurreição de Jesus.
Deixemos que os povos originários, cuja semana celebramos nesses dias de abril, entrem na sala onde estamos fechados e nos mostrem suas feridas. São ressuscitados porque resistem há mais de 500 anos e nos ensinam lições de resistência. Suas feridas são provocadas pela mesma doença que atinge toda nossa sociedade: ambição e o desamor.
Acolhendo-nos uns aos outros/umas às outras como presença do Cristo Ressuscitado, podemos experimentar, mesmo em meio às dores e aos medos justificados de cada dia, uma imensa alegria, a mesma alegria que os discípulos sentiram ao ver o Ressuscitado e a plena reconciliação conosco mesmos, uns com os outros e com Deus. Amém. Aleluia.