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Sobriedade social como atitude de espera

XIX Domingo Comum C: Lc 12, 32- 48. 

                                                               Sobriedade social como atitude de espera

 

Neste XIX domingo comum (ano C), o evangelho lido é Lucas 12, 32- 48. Nesta passagem, em seu caminho pascal para Jerusalém, Jesus continua a aprofundar a formação do seu grupo de discípulos e discípulas. No texto que meditamos no domingo passado, tinha nos advertido contra a ambição do lucro e do acumular riqueza. Agora, nesse texto que, hoje, o evangelho propõe, aponta a partilha, que passa pelo despojamento e  renúncia à riqueza, como forma de viver a fé em Cristo e testemunhar a expectativa da realização do projeto divino no mundo.   

Se fôssemos filmar essa cena do evangelho, veríamos que ela se passa à noite. De fato, essa fala de Jesus lembra a Vigília Pascal, a noite na qual, cada ano, de modo mais forte, reavivamos nossa esperança de ressuscitar com Jesus. De fato, no sábado santo à noite, ou no domingo da Ressurreição de madrugada, as antigas comunidades cristãs reviviam a madrugada da ressurreição. Nas Igrejas antigas, a vigília pascal durava a noite inteira e era mesmo sacramento da vida cristã, ou seja, de um modo de viver renovado, na espera do Senhor que vem. 

Hoje, muitas comunidades eclesiais procuram recuperar essa mística da Vigília que também é comum às espiritualidades originárias e das comunidades negras. Desde os tempos da colônia, os/as negros/as escravizados/as só conseguiam se reunir com tempo e um pouco mais de liberdade durante a noite, quando os patrões dormiam. Talvez por isso, mas também pelo próprio caráter de vigília dos seus cultos,  até hoje, a maioria das celebrações de Candomblé e de Umbanda são feitas durante a noite. Também muitas comunidades indígenas mantêm o costume de se reunirem de madrugada ao redor da fogueira. Esse encontro de madrugada em torno do fogo aceso é o momento de louvor e de invocação aos Espíritos ou aos Encantados.  

No trecho que escutamos hoje, o evangelho  de Lc 12,32-48 diz que nós, cristãos e cristãs, vivemos em uma espécie de noite permanente, à espera da vinda do projeto que Deus tem para o mundo. É uma longa vigília de Páscoa. As comunidades precisam permanecer atentas e vigilantes. É preciso vigiarmos. No entanto, ao mesmo tempo, a utopia pela qual esperamos e que o evangelho chama de reinado divino pode tardar. Essa expressão "pode tardar" indica que as comunidades de Lucas precisaram mudar a concepção da primeira geração cristã que pensava que a vinda do reino de Deus e a manifestação última de Jesus ao mundo, ocorreria logo. No tempo do evangelista Lucas, as comunidades já tinham percebido que não é assim. Por isso, a pessoa cristã tem de se engajar na história, ao mesmo tempo, sem deixar de esperar. Esperar, sim, mas com “mãos à obra” colocando em prática os valores do reino divino: o amor ao próximo, o cuidado e a solidariedade com quem sofre, o respeito ao outro, a ética, a justiça e a misericórdia. 


Alguns exegetas interpretaram esses capítulos de Lucas, 11- 13, como expressões da tal “crise galilaica”, (galilaica porque corresponde ao final do tempo da missão de Jesus na Galileia), crise missionária e existencial. Nesse momento de crise, Jesus se interroga sobre como prosseguir sua missão de testemunha e arauto do reinado divino. Ele constata que o que tinha feito antes, de certa forma, era insuficiente. E   descobre o que fazer melhor. Na crise Jesus descobre que não basta solidariedade e que justiça se faz necessária também.

O evangelho responde a essa questão dizendo que temos sim de esperar, mas de forma ativa vivendo sob o signo da partilha e que apresse aquilo que esperamos. O mundo e a vida não podem ser somente salas de espera sem importância e na qual estamos só aguardando a vinda do reinado divino... Por isso, as comunidades recordaram algumas parábolas de Jesus que ensinam: temos de continuar trabalhando do jeito que Jesus nos ensinou. Não se espera o Senhor de braços cruzados. 

Só nessa breve passagem, o evangelho narra três parábolas: 

- a primeira é a do patrão que vai a uma festa de casamento e pode chegar de noite ou de madrugada. 

- a segunda parábola é a do ladrão que ninguém sabe a hora na qual assaltará a casa. 

- a terceira é a do administrador fiel que está pronto a qualquer momento a prestar contas de sua gestão. Então, seria um erro pensar que o Senhor tarda e por causa disso podemos viver tranquilos (v. 45). 

 

A vigilância evangélica toma a fisionomia de uma cidadania ativa e crítica que luta pacificamente para que o reinado divino seja vivido desde agora, tanto no plano das consciências, como no nível das estruturas sociais e políticas do mundo. Portanto, nossas vigílias são litúrgicas, mas devem principalmente ser vigílias atentas ao que se passa no nível social e político do Brasil e do mundo. Vivemos a expectativa do reinado divino não de forma passiva e sim com atitude crítica de vigilância sobre a realidade como os profetas, homens e mulheres, que um discípulo de Isaías comparou com guarda-noturno que fica sobre a muralha, velando sobre a cidade que dorme (Is 62). 

A primeira palavra com a qual Jesus abre o evangelho de hoje nos fala muito de perto: “Não temais, meu pequeno rebanho, porque foi do agrado do Pai vos dar o Reino”. Além de ser uma grande consolação escutar essa palavra tão carinhosa, ela é também indicativo do caminho que devemos assumir. Ser “pequeno rebanho” não é apenas o fato de sermos numericamente poucas pessoas. Ser pequeno rebanho significa assumirmos a vocação de ser pequenos, ou seja, comunidade pobre, sem poder e que vive a fé a partir de baixo. Não é pequeno rebanho o Cristianismo que se coloca como aliado do poder, em grandes templos, basílicas e catedrais. 

O evangelho sempre nos adverte contra a tentação de sermos importantes e admirados pelos poderosos (Lc 6, 26). Dom Helder Camara propunha que nos juntássemos na caminhada da libertação como “minorias abraâmicas”, com consciência de sermos pequenos e frágeis, mas que como o velho  Abraão, Deus torna fecundos e capazes de gerar uma vida nova. Em um poema-oração, Adélia Prado pedia: 

 “Meu Deus, me dá cinco anos.

Me dá um pé de fedegoso 

com formiga preta,

me dá um Natal e sua véspera,

o ressonar das pessoas no quartinho.

Me dá a negrinha Fia  pra eu brincar,

me dá uma noite pra eu dormir com minha mãe.

Me dá minha mãe, alegria sã e medo remediável,

me dá a mão, me cura de ser grande,

ó meu Deus, meu pai”, 

(Adélia Prado, Bagagem, Editora Record, página 12)

 

Com as palavras de um companheiro da caminhada, Dom Helder cantava também: “Eu acredito que o mundo será melhor quando o menor que padece acreditar no menor...”No começo dos anos 40, do século XX, em um cárcere nazista, o teólogo e pastor Dietrich Bonhoeffer escreve em uma de suas cartas: 

“A Igreja só é Igreja quando existe para os outros. Para fazer um início, ela deveria entregar todo o seu patrimônio aos necessitados. Os ministros devem viver exclusivamente dos donativos voluntários da comunidade, talvez além de exercer alguma profissão profana. A Igreja deve participar das tarefas da vida na coletividade humana, não como quem governa, mas como quem ajuda e serve”[1].  

Acho que, nesse evangelho de hoje, o trecho do versículo 45 em diante não deveria ser lido nas comunidades. (De fato, a liturgia prevê a versão breve que termina antes). Essa história do senhor que chega de repente e começa a torturar o empregado era a realidade da época de Jesus e dos evangelhos, mas não pode continuar a ser colocada com o risco de se compreender que Jesus está dizendo que Deus agirá assim com as pessoas. É importante não disseminar mais essa imagem de Deus que, se não fizermos o que Ele manda, Ele vem e nos castiga. O evangelho tem de ser boa noticia e não ameaça à vida das pessoas. A sobriedade pode ser a medida feliz da espera do impossível que, pela fé, se torna possível. 

 

 



[1] - Coletânea de trechos das cartas in CEI, in Missão Profética, Suplemento 9, setembro 1974, p. 18. 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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