Povos indígenas e a missão de toda sociedade
Marcelo Barros
No Congresso Nacional, representantes do agronegócio e da elite do atraso, como denomina Jessé de Souza, tentam destruir as poucas conquistas que os povos indígenas fizeram com a demarcação de reservas como a Raposa- Terra do Sol em Roraima e também voltam à discussão sobre o chamado marco temporal que legitima a invasão e ocupação de terras indígenas pelo latifúndio, mineradoras e pelo Capitalismo depredador. Ao mesmo tempo, mesmo se o atual governo federal tomou um caminho contrário ao anterior que favorecia a violência contra os povos indígenas, o assassinato de lideranças indígenas continua alta e a situação de vulnerabilidade das comunidades Yanomami e de outros povos originários da região Norte do Brasil ainda é assustadora.
Nas últimas horas, pelo menos mais três ataques armados contra comunidades indígenas somaram-se aos outros já denunciados neste final de semana. As investidas atingiram a comunidade Guarani Mbya de Pekurity, no Rio Grande do Sul, a comunidade Guarani Kaiowá do tekoha Kunumi Vera, TI Dourados-Amambaipegua I, no Mato Grosso do Sul, e a comunidade Avá-Guarani do tekoha Tatury, parte da TI Tekoha Guasu Guavirá, no oeste do Paraná.
A humanidade inteira e, especialmente, todos os filhos e filhas do Brasil, temos uma dívida histórica e moral com os povos indígenas. Nesse momento em que o mundo inteiro sofre as consequências nefastas do aumento descomunal das desigualdades sociais e se debate com guerras insanas, a relação com os povos originários e o diálogo com suas culturas ainda se revelam mais necessários e urgentes. Todos e todas somos responsáveis pela convivência amorosa com os povos originários.
Além disso, pessoas e comunidades cristãs têm uma responsabilidade especial porque, até tempos recentes, nossas Igrejas contribuíram com o colonialismo e, com exceções de alguns missionários, não defenderam os direitos coletivos dos povos originários.
Na Igreja Católica, em 2019, o papa Francisco, junto com bispos e missionários/as de todo o mundo, reunidos no Sínodo para a Amazônia, propuseram uma evangelização baseada no diálogo respeitoso e no reconhecimento da presença divina em todas as religiões e culturas.
Em toda a América Latina, 17 de julho lembra o falecimento da figura mais conhecida que defendeu essas posições. Foi Bartolomeu de las Casas, missionário dominicano em Santo Domingos e, depois, primeiro bispo de Chiapas, no sul do México. Entre os missionários europeus, foi o primeiro e grande defensor da dignidade dos índios contra o sistema colonizador e escravagista. Ele tinha vindo da Espanha para a América no começo da colonização para ser senhor de escravos. No entanto, ao ver o sofrimento dos índios, se converteu e se tornou missionário e teólogo para lutar contra a escravidão. Defendeu a dignidade dos índios e escreveu o primeiro tratado de teologia e espiritualidade que ensina: nos corpos dos índios escravizados, é o próprio Jesus Cristo que é explorado.
Atualmente, quase cinco séculos depois, podemos lamentar que ao protestar contra a escravidão indígena, Las Casas não tenha sabido denunciar o próprio sistema colonizador em si mesmo. Há quem o acuse de ter aceito o tráfico e a escravidão dos africanos para substituir os índios nas minas e engenhos da colonização. Não há provas disso. O tráfico de africanos sequestrados para ser escravos na América floresceu mais a partir das últimas décadas do século XVI, quando Bartolomeu de las Casas já tinha morrido. Seja como for, mesmo com contradições inerentes à época, até hoje, os escritos desse grande missionário são referência para nova concepção de missão e de leitura da história a partir das vítimas.
No decorrer da história da Igreja, o modelo de missão inspirado na espiritualidade social libertadora se tornou conhecido como “lascasiana”. Hoje, a espiritualidade lascasiana rejeita qualquer intento de missão que tenha como objetivo conquistar adeptos para a fé. Só a fé vivida como diálogo valoriza a presença divina em toda realidade humana e respeita a diversidade das culturas. A memória de Las Casas nos chama a defender a vida e a liberdade dos índios por motivos humanos e sociais e por exigência espiritual da fé. Não podemos aceitar projetos sociais e políticos que não levem em consideração o respeito aos povos indígenas e suas culturas. Em um diálogo com os índios, na cidade de Puerto Maldonado, na Amazônia peruana, em janeiro de 2018, o papa Francisco pediu aos líderes indígenas que ajudassem a formar uma Igreja com rosto amazônico e indígena. Que a memória de Bartolomeu de las Casas nos ajude neste caminho.