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Cuidar da vida como morada divina

Cuidar da Vida como morada divina

               A cada 9 de novembro, em Roma, recorda-se o aniversário da consagração da basílica de São João de Latrão, considerada arquibasílica, ou seja, a primeira Igreja da Cristandade e sede da diocese de Roma. Por isso, desde muitos séculos, esse aniversário é celebrado, em todo o mundo, pelas Igrejas de tradição latina. Se a sinodalidade proposta pelo saudoso Papa Francisco for levada a sério e acarretar maior autonomia das Igrejas locais, essa celebração própria da Igreja de Roma ainda será recordada pelas outras Igrejas locais, mas como memória. De todo modo, tem sentido as Igrejas locais, mesmo mais autônomas, recordarem que a Igreja local de Roma (e não apenas o seu pastor, o papa) é primaz da comunhão de todas as Igrejas de tradição católico-romana no mundo. 

Nessa festa, atualmente, o evangelho proposto é João 2, 13- 22. Trata-se da cena na qual Jesus vai a Jerusalém e, no átrio do templo, expulsa os vendedores de animais para os sacrifícios e derruba a mesa dos cambistas. 

Os outros evangelhos colocam esse acontecimento quase no final dos evangelhos, antes dos relatos da Paixão e Ressurreição de Jesus, na última semana de Jesus em Jerusalém, poucos dias antes da paixão. O quarto evangelho menciona que Jesus participou de, ao menos três festas pascais em Jerusalém e situa esse episódio logo no início da sua atividade pública. 

O texto começa afirmando que “estava próxima a Páscoa dos judaítas”, isso é, dos judeus, colaboradores do império. O evangelho a diferencia da Páscoa do Senhor e conta que Jesus vai ao templo. Conforme o estudioso alemão Joaquim Jeremias, na época da festa, a população da cidade triplicava. Chegava a 180 mil pessoas e como, na época, a prescrição era que os cordeiros pascais fossem imolados pelos sacerdotes no templo, o movimento de pessoas no átrio do templo era imenso. Entre funcionários do santuário, peregrinos e todos os vendedores de animais, provavelmente eram milhares de pessoas. A tradição mandava que os animais fossem vendidos em uma colina próxima. No entanto, provavelmente, para facilitar o movimento e simplificar as coisas, os sacerdotes autorizavam a venda de animais para os sacrifícios no próprio átrio do templo. O texto de João distingue o átrio (no grego hierón) do próprio santuário (naós, em grego). Os vendedores e cambistas ficavam no átrio (pátio) e não no santuário propriamente dito. Ali também ficavam os cambistas. No templo, não podia entrar nenhuma imagem ou representação humana. Como as moedas estrangeiras tinham imagens de reis e príncipes, deviam ser trocadas pelas moedas judaicas que não tinham imagem. Conforme a tradição, como todo judeu fiel, Jesus fazia sua peregrinação ao templo ao menos uma vez por ano, na Páscoa. Portanto, estava habituado a ver aquilo. Em qualquer templo antigo, era normal o movimento dos vendedores de sacrifícios, como até hoje, nos santuários católicos de romaria, é normal o comércio de objetos sagrados no pátio do santuário, assim como o movimento dos que pagam promessas e trazem ex-votos. 

Isso torna mais estranha e desconcertante a atitude de Jesus. Parece ter sido algo preparado, já que ele fez um chicote de cordas e entrou com isso no átrio do templo, embora fosse proibido entrar ali com qualquer tipo de arma. O verbo que o evangelho emprega é o mesmo usado para afirmar que ele expulsava o demônio (exebalen, em grego): exorcizou..., expulsou... 

É difícil imaginar a cena. Para, sozinho, expulsar aquela multidão de vendedores, soltar os animais de suas gaiolas e derrubar as mesas dos cambistas, precisava de muita força e coragem. Com um chicote nas mãos, ele agrediu aqueles homens, talvez mais de cem e sem falar nos bois, ovelhas e pombas que ele soltou e tangeu para longe. Derrubou as mesas dos cambistas. Imaginem as moedas espalhadas pelo chão. Como eles podiam reagir? A única fala de Jesus que o evangelho reproduz é dirigida aos vendedores de pombas, que se destinavam aos sacrifícios dos pobres que não podiam pagar um boi ou ovelha. A esses, Jesus diz: “Tirem isso daqui. Não transformem a casa do meu Pai em casa de comércio (em grego: emporiou)”.

O texto se refere a duas reações diferentes: 

1ª) a dos discípulos que se lembraram do salmo: “o zelo da tua casa me devora” (Sl 69, 10). 

2ª ) a dos funcionários do templo (judaítas) que o interrogam: “Que sinal você nos mostra para agir assim?” . 

Ambos interpretaram o gesto de Jesus de forma errada. Os discípulos julgaram que Jesus cumpria a profecia de purificar o templo, que tinha sido desvirtuado. Compreenderam errado. Se fosse para purificar o templo, Jesus teria legitimado os sacrifícios e os impostos pagos ao templo. Mas, ele se posicionou contra isso. 

Por sua vez, os religiosos do templo pensaram que, provavelmente, Jesus agiu contra o templo por este ter sido reconstruído pelo rei Herodes, que nem era judeu. Também se enganaram. Esses últimos exigem uma prova de que ele, Jesus, é profeta e fazia aquele gesto em nome de Deus. Jesus responde enigmaticamente: “Destruam esse santuário – (naós) e eu o reerguerei em três dias”.

Os judaítas lembraram que Herodes tinha levado 46 anos para construir aquele templo. Como Jesus poderia reconstruí-lo em três dias? 

De acordo com os evangelhos sinóticos, mais tarde, quando Jesus foi preso, os sacerdotes o acusaram a Pilatos, afirmando que ele teria dito: “Destruirei esse santuário e em três dias, o reerguerei(Mt 26, 61 e Mc 14, 57). No entanto, era uma acusação falsa. Jesus nunca disse que ele destruiria o templo. O que ele disse foi:  “- Podem destruí-lo, vocês, que eu o reerguerei”.

O evangelho comenta: “ele falava do templo do seu corpo. Quando ele foi reerguido de entre os mortos, os discípulos se lembraram disso e creram no que está escrito (na Bíblia) e na sua Palavra.

O evangelho usa para a ressurreição o mesmo verbo que Jesus usou ao prometer reerguer o templo em três dias: reerguer-se dos mortos.  

Meditar esse evangelho na festa de consagração de um templo parece indicar que a Igreja continua interpretando esse texto como se Jesus tivesse querido purificar o santuário. Ao contrário, a profecia de Jesus é que o templo como lugar de sacrifícios está superado e que Deus quer morar em nós. O Evangelho diz que o Cristo Ressuscitado é o verdadeiro templo no qual Deus mora e nós somos, como o Cristo, moradias vivas de sua presença. Infelizmente até hoje, nas Igrejas, fala-se dos templos como “casas de Deus” e a espiritualidade sacrificial está em alta. Até a ceia de Jesus é interpretada como sacrifício oferecido ao Pai. Essa visão sacrificial, mesmo se espirit­­ualiza o sacrifício e deixa claro que Deus nos salva gratuitamente, acaba sempre por legitimar que o Pai acolhe a morte do Filho como dom oferecido a Ele. Não há como manter essa visão espiritual e não aceitar que alguma violência possa ser necessária. No tempo da condenação de Jesus, o sumo-sacerdote Caifas afirmou: “é melhor que um só homem morra pelo povo do que deixar que a nação inteira pereça” (Jo 11, 50- 52).  

Neste ano de 2025, esta celebração da dedicação da Igreja de Latrão em Roma coincide com esse domingo no qual o Brasil acolhe as delegações estrangeiras e chefes de Estado de todo o mundo para, nessa semana, realizar, em Belém a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 30). Nesse cenário de um mundo devastado por mais de 50 guerras e no qual as catástrofes ambientais são cada vez mais frequentes e mais violentas, a humanidade é chamada a transformar o seu modo de ver a Mãe Terra e transfigurar as relações humanas, sociais e ecològicas. As culturas indígenas e negras nos convidam a ver todo o universo como sagrado e a própria Vida de todas as pessoas, sem exceção, e de todos os seres vivos como santuário divino no mundo.   

                               Tudo está interligado

 

Cirineu Kuhn

 

TUDO ESTÁ INTERLIGADO
COMO SE FÔSSEMOS UM
TUDO ESTÁ INTERLIGADO
NESTA CASA COMUM

O cuidado com as flores do jardim,
com as matas, os rios e mananciais
O cuidado com o ar e os biomas
com a terra e com os animais


O cuidado com o ser em gestação
co´as crianças um amor especial
O cuidado com doentes e idosos
pelos pobres, opção preferencial

A luta pelo pão de cada dia,
por trabalho, saúde e educação
A luta pra livrar-se do egoísmo
e a luta contra toda corrupção


O esforço contra o mal do consumismo
a busca da verdade e do bem
Valer-se do tempo de descanso,
da beleza deste mundo e do além


O diálogo na escola e na família
entre povos, culturas, religiões
Os saberes da ciência, da política,
da fé, da economia em comunhão


O cuidado pelo eu e pelo tu
pela nossa ecologia integral
O cultivo do amor de São Francisco
feito solidariedade universal.

 

 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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