Marcelo Barros
Nesse primeiro domingo de julho, no Brasil, acontecem várias romarias e peregrinações tradicionais como a de Trindade em Goiás e a do Bom Jesus da Lapa, nas margens do agonizante São Francisco, no sertão da Bahia. Também, a cada ano, em julho, um grupo ecumênico de peregrinos e peregrinas do Nordeste caminha a pé para algum local que guarde a memória das lutas e do martírio do povo, como Canudos na Bahia ou a Serra da Barriga em Alagoas onde, no século XVII, se estabeleceu o quilombo dos Palmares. Nesse ano, a peregrinação é pelas estradas e caminhos de Alagoas. Neste ano, no próximo domingo 10, partirão em peregrinação para percorrer as periferias pobres do grande Recife e animar as comunidades atingidas pelas chuvas torrenciais do mês passado, mas principalmente, pela política excludente que joga os pobres para morrerem em área de riscos ou simplesmente sobreviver sem a renda a que teriam direito e sem comida.
No Brasil, desde os anos 70, a Igreja inserida nas
bases e comprometida com a libertação se chama Igreja da caminhada. Como no começo das comunidades cristãs, quem
era discípulo de Jesus se dizia do caminho.
Do mesmo modo, nessas décadas mais recentes se identifica como sendo da
caminhada quem, por sua fé, se insere nas comunidades de base, nas pastorais
sociais, nas lutas pela justiça e direitos humanos. Até hoje, o anel de coco é
símbolo da caminhada.
O texto do evangelho, lido neste XIV domingo do tempo
comum (ano C) é Lucas 10, 1- 12 e 17- 20. Ali, Jesus nos diz que estamos na
caminhada da missão libertadora por missão. E não podemos não estar. Como os
primeiros discípulos e discípulas, fomos mandados para esse caminho por Jesus:
Vão! Cuidem da saúde do povo pobre e testemunhem pela vida de vocês que Deus
tem um projeto para o mundo e esse projeto é de transformação e vida para
todos.
Conforme esse
evangelho, Jesus não enviou em missão só o grupo dos doze, como Mateus conta.
Lucas diz que foram 72 homens e mulheres (no capítulo 8, Lucas as inclui no
relato e até dá o nome de algumas que seguiam Jesus). Jesus manda de duas em
duas pessoas e usa a imagem da colheita. No capítulo 8, a parábola era da
semente a ser semeada. Agora, a missão é colher. E a perspectiva parece
otimista: a colheita é grande. Esse envio é para fora do país e da cultura
deles. É para o mundo inteiro. Atualmente, o papa Francisco fala em “Igreja em
saída”, isso é, para fora.
Independentemente,
se essa história ocorreu deste modo na época de Jesus, é certo que ocorreu nos
anos 80, na época em que o evangelho foi escrito. Os irmãos e irmãs se sentiam
mandados por Jesus para o mundo de fora. Hoje, o que seria esse mundo de fora
ao qual Jesus nos manda? Como viver essa Igreja em saída?
Na Bíblia, os
profetas comparavam essa missão com uma lavoura que, no tempo da colheita, Deus
vai querer recolher o que plantou. Isso confirma que não se trata de ir pregar
nada, nem ensinar nada. Deus já está presente e revelado nas culturas
indígenas, nas religiões de matriz africana e na vida do povo. Não é preciso carimbar
de cristão o que já é de Deus. Basta colher o que o Espírito já plantou. Fala-se
muito de missionários como as pessoas que semeiam. Nesse evangelho, a missão é
a colheita dos valores que já existem e já florescem e frutificam. Basta
colher.
Há pessoas que
olham o mundo e só veem coisas negativas. Esse evangelho pede de nós que
renovemos a confiança e a esperança. Apesar de que, neste mesmo capítulo do
evangelho de Lucas, se conta que Jesus e os discípulos foram rejeitados e
fracassaram em sua missão tanto na Galileia como na Samaria, o evangelho nos
manda ter confiança e olhar a realidade com esperança. O evangelho mostra que
as cidades à beira do lago também rejeitaram Jesus e o evangelho. No entanto,
assim mesmo, Jesus diz que a colheita é fecunda, é grande... Porque não se
trata de resultado contáveis e sim da energia que está dentro de quem vai em
missão para colher os frutos que Deus semeia e para revelar ao mundo que o Espírito
de Amor está presente e atua, mais eficaz do que todas as estruturas do mal.
Que otimismo
encorajador. Será que conseguimos ser assim tão esperançosos quando vemos tanta
gente ao nosso redor que ainda se manifesta pela alienação e pela injustiça como
se fosse justiça e verdade?
No campo, quando
a lavoura está preparada para a colheita, ou se organiza logo a colheita ou a
pessoa se arrisca a perder tudo. Na época de manga ou de caju nos sítios e
chácaras do Nordeste, também é assim. Ou se aproveita a safra ou, poucos dias,
depois não adianta mais.
Jesus diz que a
colheita é grande, mas os operários são poucos. Mesmo sendo 72, número
simbólico para dizer uma comunidade maior, ainda somos minoria e em situação
que precisamos pedir a Deus que mande mais operários e operárias para a sua
colheita. No caso da colheita de Deus nesse mundo, as condições são de
precariedade, pobreza e uma série de dificuldades e até perseguições. Chega a
ser incrível que Jesus deixe claro que está mandando as pessoas para situações
de risco. Mandar ovelhas para o meio de lobos, é para serem devoradas. Mas,
Jesus manda e pede que tomem cuidado. Adverte que o risco é grande, mas a opção
é a de viver, resistir e vencer. Isso é que implica o martírio: a fidelidade à
causa até se arriscar, mas fazendo tudo para resistir e vencer.
Jesus manda que
o discípulo ou discípula vá no caminho só com duas túnicas e sem sandálias.
Isso é sinal de ruptura social muito exigente e dura. Na sociedade de Jesus, era
pela roupa que usavam que as pessoas revelavam a que extrato social pertenciam
e se faziam parte ou não das aldeias. Andar só com duas túnicas que, nas
estradas sujas de barro e de terra, logo se deterioravam e sem sandálias,
colocava os discípulos/as como permanentes forasteiros/as e certamente
marginalizados do convívio social mesmo dos pobres das aldeias.
É sempre bom repetir: Jesus não manda os
discípulos pregarem sobre ele nem formar uma religião, mas testemunhar o reino,
o projeto de Deus para o mundo. A missão consiste em revelar o reinado divino e
mostrar que este mundo, no sentido do sistema que o domina, será proximamente
julgado. O reino ou reinado de Deus é a realização do projeto de Deus para
todos: vida, saúde e paz. Essa Shalom, (Paz),
não é apenas desejo. É dom oferecido como sinal da vinda do reino. Paz, Shalom, significa saúde, plenitude de
vida e de comunhão. Não é só ausência de guerra. É justiça e irmandade,
respeito às culturas diferentes e projeto de um projeto divino de inclusão para
todos. Nesse mundo de intolerância e de ódio, vamos colher o que Deus plantou,
mas com o cuidado de não colher junto o ódio e a intolerância que vemos nos
adversários e inimigos. Isso não devemos colher.
Assim como a
intimidade com Deus fez parte da base do envio, o evangelho conta que também a
volta da missão suscita oração, em primeiro lugar, do próprio Jesus. Uma
espécie de transe, de possessão do Espírito. É oração suscitada pelo vibrar do
coração e pela alegria que estremece o corpo inteiro. É como a dança da
Sabedoria bíblica (Cf. Pv 8, 30- 31; Eclo 24).
Hoje, as
comunidades cantam um dos cânticos do Zé Vicente que descreve muito bem a
alegria de ser chamado e viver a caminhada:
O Deus que me criou, me quis me
consagrou
Para anunciar o seu amor
Eu sou como chuva em terra seca pra
saciar
Fazer brotar eu vivo para amar e
pra servir!
É missão de todos nós;
Deus chama, eu quero ouvir a sua voz! (...)
Eu sou, sou profeta da verdade
Canto a justiça e a liberdade
Eu vivo para amar e pra servir!