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10a circular da quarentena - relendo a Carta ao povo de Deus

Recife, 29 de julho 2020 – memória de Santa Marta

Queridos irmãos e irmãs,

“Sentinela, em que ponto está a noite?  Sentinela, em que ponto está a noite? 

O guarda noturno responde: O amanhecer já vai chegar, 

mas depois vem outra noite e se vocês quiserem saber, é só perguntar” (Is 21, 11- 12). 

Esta palavra do profeta Isaías contra os edomitas parece apropriada hoje para nos perguntarmos sobre o mundo e principalmente o Brasil: Em que ponto está a noite? Todo mundo procura saber se já chegamos ao pico da pandemia. Hoje, se discute muito como a sociedade brasileira é dominada por uma imensa e nefasta noite de um racismo estrutural e que condiciona as políticas de governo e a forma genocida e ecocida como a toda a sociedade está organizada.

Dentro deste quadro trágico, só podemos nos alegrar ao ler e reler a Carta ao Povo de Deus, o documento publicado e assinado por um grupo de mais de 150 bispos católicos do Brasil. Há muitos que não entendem a diferença entre um documento como este e um pronunciamento oficial da CNBB e grupos tradicionais tentam minimizar a importância do documento afirmando exatamente que não é oficial por não ser da CNBB. 

Não vão ser argumentos racionais que convencerão pessoas e grupos que optam visceralmente por posturas rígidas e fechadas. Do mesmo jeito que eles não aceitam o papa Francisco e os seus documentos e textos não valem para estas pessoas, também não adiantariam declarações oficiais da CNBB, se estas só valem se vierem confirmar o que eles já pensam e já dizem.  Conforme o ensinamento do Concílio Vaticano II, cada bispo é pastor da Igreja Universal e sua missão não se limita a uma diocese. Nem depende da conferência nacional para dar uma palavra em nome da Igreja e  exercer o seu ministério profético. 

É claro que em um episcopado brasileiro que tem quase 500 bispos, mais de 155 representam um número que, embora minoritário, é expressivo e tem peso. Além disso, é preciso levar em conta as listas de apoio assinadas por mais de mil padres e diáconos, assim como a adesão de muitas organizações e grupos do laicato católico. Então, de fato, esta carta dos bispos claramente revela um posicionamento da Igreja como assembleia de uma boa parte dos discípulos e discípulas de Jesus na Igreja Católica do Brasil, pastores e fieis reunidos e em conjunto. 

Esta é a segunda vez que o episcopado católico brasileiro publica uma “Carta ao povo de Deus”.  A primeira, emitida pela presidência da CNBB e em nome de todo o episcopado brasileiro, foi publicada em 1976 e é dos documentos mais fortes e proféticos contra a Ditadura militar que na época dominava o país. Podemos ler este novo documento, publicado agora por este grande número de bispos e apoiado por um número maior ainda de padres e de grupos do laicato, como atualização e aplicação da mesma preocupação pastoral à realidade dos nossos dias. 

Não quero resumir aqui o texto dos bispos para não tirar o prazer de quem puder ler com calma e saborear cada palavra. Apenas me parece importante sublinhar os seguintes pontos: 

1º - eles consideram a sua carta uma expressão da sua missão evangelizadora. Não é algo alheio ou além da missão cristã de testemunhar o reino de Deus presente no mundo. 

2º  - a carta é dirigida ao povo de Deus e tem como tema fundamental o cuidado com os mais pobres. Não se trata de conflito de poderes, nem de uma reação de bispos católicos porque o presidente da República atrelou o governo aos interesses de pastores neopentecostais e políticos da mesma linha. Não se trata de concorrência religiosa nem lobby de Igreja. O que está em questão é a responsabilidade comum pelo povo e especialmente pelos grupos e pessoas mais frágeis e vulneráveis como são as comunidades indígenas.  

 3º - Conforme os evangelhos, a palavra de Jesus sempre foi clara e sem artifícios. Ele disse: “seja o vosso sim quando é sim e não quando é não” (Mt 5, 37). Diferentemente de alguns documentos eclesiásticos de tempos mais recentes, este tem linguagem clara e direta. Ao declarar de quem é a responsabilidade por toda a tempestade e os desmandos que se abatem sobre o Brasil não hesita em responder: o presidente da República, o governo federal em seu conjunto e a elite que ainda o apoia. 

O documento pede às pessoas católicas ou não três coisas: 

1º - que não fiquem indiferentes ao que está acontecendo.

2º - que não percam a esperança 

3º - que atuem juntos e solidariamente para transformar esta realidade. 

Ao reler este documento, não posso deixar de lembrar da imensa responsabilidade da hierarquia da nossa Igreja e de outras Igrejas na legitimação e no apoio à estrutura injusta e iníqua que vigora em nosso continente. Há 52 anos, em Medellín os bispos reunidos na 2ª conferência do episcopado latino-americano propuseram que a Igreja se solidarizasse profundamente com a caminhada libertadora dos pobres e se colocasse a serviço da libertação integral dos povos. Este apelo foi levado a sério apenas por uma pequena minoria de bispos e padres. E durante o pontificado dos dois papas anteriores a Francisco foi não somente ignorado, mas combatido e condenado. Agora os bispos que fazem a Carta ao Povo de Deus pagam o preço de terem em suas dioceses e também no plano nacional uma parte do clero, seminaristas e grupos de leigos que sonham com a Igreja simbolizada no grupo norte-americano “Cavaleiros de Colombo”. 

De todo modo esta Carta ao Povo de Deus é uma faixa de luz em meio à escuridão e eu encerro esta minha comunicação na quarentena, acolhendo no coração e repartindo com vocês a palavra que os bispos nos deixam já no final da sua carta: Despertemo-nos, portanto, do sono que nos imobiliza e nos faz meros espectadores da realidade de milhares de mortes e da violência que nos assolam. Com o apóstolo São Paulo, alertamos que “a noite vai avançada e o dia se aproxima; rejeitemos as obras das trevas e vistamos a armadura da luz” (Rm 13,12).

  Deus abençoe a cada um/uma de vocês. Abraço carinhoso do irmão Marcelo Barros

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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