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​textos e palestras, sábado, 24 de março 2012

Itinerância, da vocação à provocação profética

(Palestra que dei no encontro internacional da pastoral dos nômades, ciganos e ron, Fátima, Portugal, 24 março 2012)

Marcelo Barros

Minha alegria e emoção de estar aqui com vocês é a de aprender e ser renovado pela profecia que essa pastoral que vocês realizam representa para o mundo. Fico contente de ter essa oportunidade de testemunhar meu amor por essa caminhada que vocês fazem, mas confesso que sinto certo pudor ao falar a vocês hoje, porque, apesar dos meus mais de 30 anos de trabalho junto aos pequenos lavradores e aos movimentos populares e minha relação de proximidade com a pastoral dos migrantes no Brasil, não tenho experiência nesse trabalho específico com nômades e ciganos. De qualquer maneira, como devo obedecer ao pedido que a coordenação desse encontro me fez, reparto com vocês como vejo a função dessa pastoral hoje no mundo em que vivemos e no conjunto das Igrejas cristãs. Tentarei com vocês aprofundar algumas pistas sobre como viver uma espiritualidade cristã renovada e macro-ecumênica ou pluralista, a partir da inserção junto aos ciganos, ron e demais migrantes. Minha contribuição específica é sobre como a reflexão e a prática da teologia latino-americana podem contribuir para a pastoral de vocês. Talvez isso que direi não representa nenhuma novidade ou vocês, ao ouvir, possam pensar: tudo isso já sabíamos. Se for assim, ótimo, porque isso me confirma no caminho a seguir e, ao mesmo tempo, mostra que, tanto na Europa, como na América Latina, estamos aprofundando o mesmo caminho inserido de viver a fé, a espiritualidade, a teologia e o compromisso cidadão de tornar possível um mundo novo mais justo, solidário e no qual a cidadania seja planetária.

Na América Latina, o método teológico continua sendo sempre o que se resume ao dizer: “ver, julgar e agir”. Por isso, mesmo se falo a pessoas que entendem desse assunto melhor do que eu, tentarei resumir rapidamente como vejo a situação desses grupos que vocês acompanham e o que está sendo tentado com relação a isso nos diversos continentes.

1 – “Errantes do novo século”

 Era esse o título de um livro clássico sobre um movimento messiânico do sul do Brasil no começo do século XX. Entretanto, se, no século XX, já havia movimentos e ondas de migrações, no começo do século XXI as contradições sociais se avolumaram e o número dos migrantes cresceu enormemente. A política neo-liberal e as conseqüências do colonialismo secular provocaram, além das divisões internas, ditaduras e guerras civis que, em vários países pobres da África e da América Latina, provocaram nas últimas décadas, um aumento imenso da onda de migrantes para a Europa e América do Norte e mesmo em países emergentes como o Brasil que continuam exportando migrantes brasileiros, mas também recebem fluxos e fluxos de migrantes vindos de países vizinhos. Hoje há colônias de migrantes que se constituem como verdadeiros países dentro de outros. Uma revista semanal brasileira publicou recentemente que “mais chineses moram fora da China continental do que franceses vivem na França. Há 22 milhões de indianos espalhados por todos os continentes. Assim, libaneses continuam ocupando a África Ocidental e a América Latina, os japoneses no Brasil e assim por diante. Há milênios, as diásporas fazem parte do mundo. Entretanto, há duas novidades: 1º) esses deslocamentos populacionais são mais freqüentes e mais intensos do que antes. 2º) As leis internacionais se tornaram mais rígidas e desumanas. Apesar de que já em 1948, a Declaração universal dos direitos humanos reconhecia o direito de todo ser humano se deslocar e viver onde for melhor para ele e para os seus, esse direito tem sido desprezado e combatido por quase todos os países que recebem migrantes. Todo mundo sabe que migrante rico ou tecnicamente especializado não tem problemas. Segundo um estudo da Universidade da Califórnia, em Berkeley, no Vale do Silício, (EUA), mais da metade dos cientistas e engenheiros são chineses e indianos “e compartilham dicas sobre tecnologia e oportunidades de negócios com pessoas em seus países natais”. Em um estudo da Fundação Kauffman, um grupo de pesquisadores descobriu que 84% dos empresários indianos que voltam ao seu país mantêm ao menos um contato mensal com sua família e amigos nos EUA”[1].

Essa é a migração rica ou capitalista e dentro do próprio sistema. Embora essa também tenha crescido, a que mais explode numericamente é a dos deserdados e que migram em busca de mais vida e justiça. E esses são rejeitados e perseguidos pelos governos e discriminados por grande parcela das populações locais que se sentem ameaçadas ou perturbadas pelo incômodo dos empobrecidos que invadem suas ilhas pensadas para ser de luxo e que hoje estão também em crise.

O século XXI começou com um forte agravamento das contradições. Por um lado, desde o primeiro ano do século (2001), os movimentos contra o modelo único da globalização neo-liberal e capitalista tomaram formas internacionais nos fóruns sociais e nos movimentos de juventude que tomam praças e fazem protestos. Na América Latina, existe um novo processo social que chamamos de novo Bolivarianismo que parte de raízes indígenas e populares e tem orientação socialista nova. Por outro lado, as desigualdades sociais entre ricos e pobres aumentaram muito e a crise ecológica ficou mais visível e põe em risco a própria vida no planeta.

Se antes, tínhamos exilados e refugiados sociais e políticos, desde o começo desse século, aumentou também o número dos refugiados de desastres ambientais, exilados da ecologia que engrossam ainda mais os migrantes ilegais desse mundo onde cada vez mais o que é legal não é justo e o que seria justo não é legal.

Nos organismos internacionais, vários governos latino-americanos e africanos têm protestado contra as medidas repressivas dos governos europeus e norte-americanos contra os migrantes clandestinos ou simplesmente pobres. Entretanto, nenhum governo, mesmo dos países pobres, se sente envolvido e nenhum defende os direitos dos ciganos, dos ron e de minorias que mesmo tendo nascido em um país determinado são considerados como apátridas. Esses são os mais oprimidos e mais discriminados de todos os migrantes. No mundo inteiro, mas principalmente nos países ricos hoje também em crise, os nômades, ron e ciganos parecem revelar que existe algo de podre e de falso em nosso mundo e isso faz com que eles, nômades, ciganos e ron não devam ser vistos apenas como objeto do nosso cuidado e sim como sujeitos de uma profecia importante que eles realizam e assim contribuem de forma importante para o futuro do planeta.

  

2 - Olhar bíblico sobre os nômades

Várias culturas e tradições espirituais intuem o Espírito Divino como uma ventania livre que, como diz o quarto evangelho, “sopra onde quer. Ouves o seu rumor, porém não sabes de onde vem, nem para onde vai” (Jo 3, 8). E como se estivesse falando dos nômades e das pessoas que por toda a vida vagam por diversos lugares, o evangelho acrescenta: “Assim (como é o vento) acontece com a pessoa que nasceu do Espírito” (Jo 3, 8).  Essa ventania divina, livre e incomodadora se chama Iansã na tradição africana dos Iorubás. Tem outros nomes nas tradições indígenas e orientais. Conforme a Bíblia judaica, Deus é de todos os povos e vai suscitando êxodos por onde ele quiser (Cf. Am 9, 7). Ele fez isso especialmente onde há grupos e pessoas dispostas a quebrar estruturas opressoras que os oprimem. O que quero dizer com isso é que é profundamente espiritual, isto é, inspirado por Deus, esse fato das pessoas não se conformarem em viver a sina que é destinada aos mais empobrecidos: uma vida sub-humana e sob permanente risco de morte. Ao tentarem uma vida mais vida em outras paragens ou em estilos de vida alternativa, eles respondem positivamente a um chamado divino para a vida, a dignidade humana e a liberdade. Na América Latina, atualmente, quando perguntei a um companheiro como via o novo processo social e político emergente em países como a Bolívia, o Equador e a Venezuela, ele respondeu: “É muito positivo porque passamos da resistência à esperança”. Sem dúvida, essa é a razão pela qual as pessoas e grupos vivem como nômades e peregrinos no mundo: passar da resistência à esperança.

Um dos textos mais importantes de toda a Bíblia e que contém uma teologia crítica a toda religião e toda sociedade estabelecida é 2 Samuel 7. Ali se conta que o rei Davi tinha se livrado dos seus inimigos, havia construído um palácio de cedro para si e disse ao profeta Natan, seu funcionário, que iria construir um templo para Deus que até ali era adorado em uma tenda como no tempo do Êxodo no deserto. Como um bom funcionário do palácio, o profeta Natan aprova o plano do rei. No entanto, à noite, escuta a voz de Deus que manda dizer a Davi: Sempre morei em tenda nômade e não quero templo. Eu é que vou construir para você uma casa (no sentido de descendência). No texto, podemos ler uma crítica ao fato de que Davi deixou de ser pastor e se acomodou na riqueza, mas também vemos a preferência de Deus por uma fé nômade e sempre itinerante[2].

Certamente, é por isso que o profeta Oséias diz que Deus propõe a Israel conduzi-la de novo ao tempo nômade do Êxodo, onde, no deserto quer falar ao seu coração e renovar com ela o seu tempo de namoro (Oséias 2, 14- 21).

Mais tarde, o texto bíblico conta: quando os babilônios ameaçavam o reino de Judá, Deus manda o profeta Jeremias chamar os recabitas ao templo de Jerusalém e lhes oferecer vinho. E as pessoas dessa tribo nômade responde: “Nosso antepassado Jonadab nos proibiu de beber vinho, nos proibiu de construir casa e plantar roça. Vocês devem viver sempre em tendas e se espalhar pela terra. Só agora nos sentimos ameaçados pelos babilônios e nos refugiamos em Jerusalém. Mas, não queremos deixar nosso estilo tradicional de vida”. Deus diz a Jeremias que abençoa as pessoas dessa tribo por serem fiéis à tradição dos seus antepassados e por manterem esse estilo de vida (Cf. Jr 35). Evidentemente, não se trata de uma idealização da vida nômade e de uma crítica ao sedentarismo. Não é esse o assunto. O profeta chama a atenção para o fato de que os recabitas são fiéis aos compromissos assumidos e à sua tradição própria. Mas, é exatamente esse o problema de uma sociedade que se considera mais moderna e mais civilizada do que as outras e quer se impor como única forma de vida.

Se quiséssemos poderíamos lembrar outros textos bíblicos, como a exaltação do amor da Sunamita e do seu pastorzinho bem amado, em contraposição à vida na corte do rei Salomão (Cântico dos Cânticos) ou mesmo o mito de Caim e Abel que mostra a rivalidade entre agricultores sedentários e pastores nômades e como os pastores acabam sendo vítimas dos mais estabelecidos.

Mesmo no Novo Testamento, evangelhos como Marcos apresentam Jesus em permanente itinerância e chamando seus discípulos a segui-lo. O que se observa é que quanto mais ele está fora das cidades e da sede do poder religioso e político, mais é aceito e sua missão é compreendida. Quanto mais se aproxima da cidade e do templo, mais encontra conflito e oposição.

Jesus viveu como itinerante, não apenas porque não tinha uma casa onde morar. Conforme Mt 4, 13 e Mc 2, 1, provavelmente, por certo tempo, Jesus morou em Cafarnaúm, repartindo uma casa com André e Pedro. Jesus viveu principalmente como itinerante porque queria testemunhar que Deus nunca pode ser aprisionado em um sistema religioso. Por  isso, ele diz: “As raposas têm tocas, os pássaros, ninhos, mas este Ser Humano não tem nem onde encostar a cabeça” (Lc 9, 58). Por isso, as comunidades paulinas valorizaram muito os missionários itinerantes. Parece que a maioria das comunidades cristãs eram constituídas pelo que os romanos chamavam de paroiké, isto é, estrangeiros residentes, mas sem direito de cidadania. É a eles que a carta de Pedro se refere quando diz que se dirige aos peregrinos (1 Pd 1, 1) e quando insiste: “Exorto-vos como a peregrinos e forasteiros” (2, 11). A carta aos hebreus fala dos antepassados da fé “como peregrinos e estrangeiros na terra” (Hb 11, 13). Sem querer ser exaustivo ou lhes cansar com um curso bíblico, podemos concluir que, desde o começo do Cristianismo, a itinerância e a não cidadania desse mundo são constitutivos do ser cristão, como sinais da abertura ao reino que vem.

3 – Quando a Igreja era nômade

Enquanto Jesus viveu e atuou no mundo rural das aldeias da Galiléia, o Cristianismo primitivo floresceu nas periferias das cidades da Ásia Menor (região da atual Turquia), da antiga Grécia e em algumas cidades do Império Romano. Nessas cidades, as primeiras comunidades cristãs, fundadas por Paulo e sua equipe ou por outros apóstolos, eram constituídas principalmente pelo que, na época, se chamavam de paroiké, ou seja, residentes não cidadãos. Para animar essas comunidades, as Igrejas tinham missionários itinerantes que, em pequenas equipes, rodavam pelos diversos lugares, ajudando as comunidades. Vários documentos eclesiásticos dos primeiros séculos honram esse ministério dos missionários itinerantes. Um documento atribuído aos cristãos do século II é a chamada “Carta a Diogneto”. Um dos textos mais conhecidos desse documento fala assim:

“Os cristãos não são diferentes das outras pessoas, nem pelo território, nem pela língua, nem pelo modo de viver. Eles não moram em uma cidade sua, não usam uma língua própria, nem levam um gênero de vida especial. (...) Moram em cidades gregas ou bárbaras, como coube a cada um. Adaptam-se aos costumes de vestir, de comer e em todo o resto de vida. Dão um exemplo de uma forma de vida social maravilhosa que, segundo todos confessam, é inacreditável. Habitam pátrias próprias, mas sempre como peregrinos. Participam de tudo como cidadãos. Toda terra estrangeira é para eles como uma pátria e toda pátria é uma terra estrangeira. Moram na terra e são regidos pelo céu. Obedecem às leis estabelecidas e superam as leis através das próprias vidas. Amam todos e por todos são perseguidos. São condenados à morte e ganham a vida. São como mendigos, mas enriquecem a muitos. De tudo carecem, mas abundam em tudo. Insultados, bendizem. Fazendo o bem são punidos como maus. São difamados, mas são inocentes. São odiados e os que os odeiam não sabem explicar a causa desse ódio. Em uma palavra, os cristãos são para o mundo o que a alma é para o corpo (...)[3] 

Mais tarde, no século IV, o Império Romano foi cooptando as Igrejas e o imperador Teodósio acabou por tornar o Cristianismo a religião oficial do império (em 395). A tendência natural dos pastores e das comunidades foram se acomodar aos costumes do império. Por isso, muitos dos primeiros monges cristãos faziam voto de itinerância e também se colocavam como apátridas, rejeitando qualquer cidadania terrena. Muitos monges faziam votos de auto-exílio ou seja um exílio voluntário no qual o monge ou monja não aceitava ser cidadão de nenhuma terra concreta. Como atitude profética. Recentemente, nos Estados Unidos, no tempo da guerra do Vietnam, ou mais recentemente, diante da Escola das Américas que formava militares latino-americanos para serem ditadores em seus países, militantes cristãos e não cristãos queimavam seus documentos de serviço militar ou até carteira de identidade. De certo modo, esses irmãos e irmãs norte-americanos faziam o mesmo tipo de gesto profético dos primeiros monges e monjas peregrinos e por contestação ao império, apátridas.

Na América do Sul e principalmente no Paraguai e Brasil, temos o povo Guarani que apesar de todas as perseguições e massacres dos quais foram e ainda continuam a ser vítimas, continuam sua permanente peregrinação na busca do que chamam “A terra sem males”. Atualmente, as constituições nacionais da Bolívia e do Equador garantem que uma função essencial do Estado é proporcionar o Bem Viver, noção indígena andina de vários povos e que se contrapõe ao modelo capitalista de organizar a sociedade. Essa vivência chama a atenção para a relação do ser humano com a terra. É muito comum dizer-se: “Pacha allpamantam kawsayka hatarimun (toda a vida brota da  Pacha, isto é, do solo”). o antropólogo J.J. García mostra que isso significa uma mudança de visão com relação à vida. A base da vida é a relação sagrada do ser humano com a natureza o mundo espiritual”[4].

Para mim uma das coisas mais estranhas que tenho dificuldade de compreender é porque as conferências episcopais e a Igreja Católica institucional do Equador, Bolívia e Venezuela têm tanta dificuldade de compreender e aceitar esse caminho novo que no Equador se chama “revolución ciudadana”, na Bolívia, “insurgência indígena” e na Venezuela “novo processo bolivariano”. Tenho a impressão de que a dificuldade maior não é só uma postura política de uma Igreja hierárquica que em quase em toda a sua história se posicionou à direita e está tão habituada a isso que não consegue mudar de lado na história. Pode haver isso, sim. Mas, tem algo mais profundo e teológico. É que a maioria dos bispos e padres ainda sonham com um modelo eclesiológico de Cristandade, (sociedade cristã, hegemonia da Igreja Católica com seus privilégios e inserção na sociedade estabelecida a partir do poder eclesiástico e clerical). E esse modelo está condenado por esse novo caminho. É como se esse processo transformador interpelasse a Igreja e exigisse dela voltar às suas raízes peregrinas e mais nômades. Nesse sentido, os índios e comunidades de cultura nômade na América Latina, assim como os ron e ciganos na Europa exercem um papel profético com relação à sociedade acomodada e à própria Igreja de tipo Crsitandade, hoje ainda dominante como modelo de Igreja e pastoral existente.  

4 – Nossa aventura pastoral.

Como já lhes disse, não me sinto com condições de sugerir caminhos ou propor linhas de ação para a pastoral que vocês realizam tão bem. Vou apenas sugerir algumas intuições a partir de minha experiência com os índios e lavradores no Brasil.

Sem dúvida, essa pastoral pode renovar-se e traçar um novo itinerário de inserção, em três níveis:

1 – No plano mais interno, na relação com as comunidades nômades.

2- No plano externo com relação ao mundo que nos rodeia, à sociedade européia.

3 – No plano dos missionários em sua relação com nossas Igrejas.

a – em relação com as comunidades.

Na América Latina, durante séculos, aprendemos que a pior opressão acontece quando o sistema é interiorizado e o próprio oprimido lá dentro do seu próprio ser dá razão ao opressor e se sente mesmo um nada e se convence de que, de algum modo, merece a marginalização que sofre. Por isso, quando as comunidades judaicas eram mais perseguidas e discriminadas, a espiritualidade judaica desenvolveu a teologia do sábado, ou seja, o direito de toda pessoa humana viver o descanso, a parada e a gratuidade da vida. E um rabino como Abraham Heschel dizia: “O sábado existe para nos recordar que todo ser humano é um príncipe e mesmo a pessoa vítima da escravidão tem vocação de rei”. Penso que essa é a missão da pastoral de vocês com relação às pessoas e comunidades. Sem dúvida, uma Igreja cristã pode melhor fazer isso à medida que reconhece nos ciganos e ron a figura de Jesus, itinerante e peregrino. Então, em relação às comunidades, a pastoral tem a missão de servir, de se inserir como apoio e não de querer tornar os ciganos católicos ou cristãos. Todos os ciganos, crentes ou não crentes, cristãos e pessoas de outras religiões devem contar conosco como irmãos e companheiros. Na América Latina, desde os anos 70, a pastoral social deu um salto qualitativo. Antes era ainda uma pastoral de tipo religiosa que pretendia “evangelizar” no sentido de tornar as pessoas católicas. A partir da conferência dos bispos em Medellin e da teologia da libertação, a pastoral passou a ser compreendida como serviço ao povo (A própria Igreja é serviço) e o importante é servir às reais necessidades do povo e não trabalhar em função da própria Igreja no sentido de uma pastoral apenas religiosa.

B – Em relação à sociedade.

Nos Andes, os velhos aymara contam uma fábula sobre a raposa e a perdiz. Dizem que um dia a raposa procurou a perdiz. Esta ficou muito assustada porque sempre que a raposa lhe procurava era para caçá-la e devorá-la. Mas, naquele dia, a raposa lhe falou:

- Mama perdiz, como é belo o seu canto. Você não poderia me ensinar a cantar assim?

A raposa, desconfiada, respondeu:

- Não é possível, porque o meu cântico exige que se tenha um bico estreito, pequeno e você tem uma boca muito larga. Aí o som não sai corretamente e fica impossível cantar assim. Com uma boca dessas, o único som que podes emitir é wac, wac e é um som feio.

A raposa saiu e se convenceu de que tinha um som feio e que precisava mudar isso. Procurou de novo a perdiz e perguntou: “O que posso fazer para cantar como tu cantas?”.

A perdiz já mais preparada respondeu como quem não quer nada: “O único jeito seria costurar teu focinho e assim estreitá-lo para que ele possa emitir o som mais parecido com o meu”. A raposa aceitou e a perdiz lhe costurou o bico inteiro. O resultado, vocês imaginam. A perdiz continuou cantando feliz e mais livre. A raposa não conseguiu nunca cantar como uma perdiz e a um determinado momento quis comer a perdiz, mas o focinho costurado não lhe permitiu. Ficou furiosa e fez um esforço tão grande que rasgou o focinho todo, ferindo-o. Durante dias, ela não podia mais comer nada[5].

Os índios contam essa fábula para falar de sua relação com a sociedade dominante que quer, ao mesmo tempo, cantar como a perdiz e de vez em quando devorá-la. O pequeno só se liberta através da astúcia e da capacidade de surpreender o outro. É claro que a raposa quis cantar como a perdiz porque esta foi capaz de cantar diante dele, ou seja, enfrentar o perigo e mostrar seus dotes. Isso é muito importante em uma sociedade como essa, sem perspectiva e sem esperança.

Nesses últimos anos, à medida que a América Latina viu nascer um novo processo social e político mais popular, ao contrário, a Europa caminhou mais para a direita e para dias piores do que o passado.

Nesse contexto, penso que é importante que pastorais como essa dos nômades possam ser portadores de uma nova esperança para toda a sociedade. No Brasil, o MST (Movimento dos Trabalhadores sem Terra) tem apostado na possibilidade de um diálogo fecundo entre movimentos do campo e da cidade. Diante de projetos de agro-negócio do governo e dos latifundiários, ele incentiva e fomenta a agricultura familiar e as estatísticas mostram que 70% do que se come nas mesas dos brasileiros vem da agricultura familiar. Há alguns anos, era difícil pensar que uma proposta de caráter artesanal pudesse se impor a uma sociedade tão estruturada de forma massiva. Mas, esses movimentos artesanais têm sim se não transformado, ao menos influenciado o conjunto da sociedade. Do mesmo modo, os povos indígenas não imaginam voltar ao estilo de vida do século XVII ou XIX, mas mesmo nesse começo do século XXI, seu modo de viver pode ajudar a sociedade a ser mais humana e ecológica.

C – Em relação às Igrejas

Sem dúvida, a perspectiva de uma teologia social ecumênica e que se veja como presença e serviço ainda questiona muitas estruturas tradicionais da Igreja. Nas palavras de vários bispos e padres, ainda se sentem expressões de quem olha os ciganos e ron como coitadinhos e como objeto de nossa ajuda. Como se fossem eles que precisassem de nós. De fato, somos nós que precisamos deles. São eles que nos ajudam a converter e a sermos uma Igreja mais de acordo com a proposta de Jesus nos evangelhos.

Será que não seria a hora de começar na Europa uma nova teologia da libertação em contato com os movimentos sociais latino-americanos, mas falando uma linguagem própria para a realidade daqui e para as Igrejas cristãs européias? Há quem diga por aí que a teologia da libertação morreu ou com relação à pastoral nômade que em um mundo sofisticado e massificante como esse, essa teologia e essa pastoral não têm mais nenhuma vez nem chance. Quando escuto alguém dizer que a teologia da libertação morreu, me recordo de um antigo conto de Guy de Maupassant chamado “Em família”. Trata-se de um senhor que, com sua esposa, preparam para já o velório de sua mãe, discutem sobre os bens a herdar, tomam providências para se apoderarem do espólio, quando, para surpresa de todos, a netinha vem do quarto da senhora supostamente falecida, e “cheia de emoção” gagueja: - Vovó está se vestindo... ela vai descer[6]. Essa mesma situação me parece ocorrer com a teologia da libertação, cuja morte é tantas vezes anunciada e que está sempre fazendo fóruns mundiais e organizando novas coleções. Poderíamos pensar sim uma teologia da libertação pluralista e macro-ecumênica a partir da inserção na vida e nas comunidades nômades.

Sem dúvida, a pastoral dos nômades pode retomar nas nossas Igrejas, às vezes, por demais sedentárias e acomodadas, uma mística da itinerância. Em diversos países, temos a graça de contar com missionários e missionárias que têm se inserido nas comunidades nômades, se tornando eles mesmos nômades e morando com esses irmãos nômades em seus acampamentos. Entretanto, me parece que sua experiência de vida e de missão ainda é pouco conhecida e pouco assumida pelas comunidades eclesiais. Seria importante que essa mística ou espiritualidade nômade pudesse contagiar toda a Igreja para que então toda comunidade eclesial pudesse hoje ser como Jesus a dizer novamente ao mundo: “eu era nômade, peregrino ou estrangeiro e vocês me acolheram” (Mt 25, 31 ss). A poetisa Emily Dickinson escreveu: “O amor é a pessoa da ressurreição que recolhe a poeira e canta a vida.”

[1] - Cf. The Economist, Andarilhos Modernos, artigo publicado por Carta Capital, 07/ 12/ 2012, p. 108- 110. 

[2] - Já nos anos 60, o teólogo francês Yves Congar escreveu: Le Mystère du Temple, (Ed. du Seuil), onde ele dizia que Deus nunca quis templo e revelou que o seu templo é vivo, se manifesta principalmente em Jesus Cristo e através dele em todas as pessoas humanas que devem sempre ser vistas como templos vivos do Espírito.

[3] - AUTOR ANÕNIMO, Carta a Diogneto, cap 5, v 1- 17 e 6, 1.

[4] García Miranda, Juan J. (2007). “La etnonormativa andina”. En: Zapata, Claudia (Comp.). Intelectuales indígenas piensan América Latina. Quito: Abya Yala. 73.

[5] Cuentos aymaras. Proyecto de Educación Bilingüe. Puno 1991.

[6] Maupassant 1987. “Em família” é encontrado às páginas 102-126, e a citação transcrita é da p. 123.

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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