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Prefácio a um livro espírita - O que há de verdade nisso?

"Finalmente, a Igreja Católica reconheceu a verdade espírita da reencarnação". 

"Padre católico escreve prefácio para livro ditado pelo espírito de Dom Hélder Câmara".

O que há de verdade nisso?

Há alguns anos, fui procurado pelo médium Carlos Pereira que me pediu que escrevesse o prefácio para um livro que o espírito de Dom Hélder lhe havia ditado. Respondi que não poderia por não compreender essa doutrina. Respeito-a, mas não faz parte da minha cultura. É como uma língua que eu não falo. Ele me mandou o livro para ler. Eu li e lhe respondi que estava de acordo com toda a mensagem do livro (sobre paz, justiça, não violência, etc), mas que não reconhecia naquelas páginas o estilo literário de Dom Hélder Câmara com quem trabalhei e convivi por anos. Carlos me respondeu que essa falha era problema do receptor e que pedia que eu escrevesse mesmo como católico e a partir do que penso. Como trabalho no diálogo intercultural e interreligioso, aceitei e fiz o prefácio. Nele, não me pronuncio sobre se o livro é psicografado ou não e menos ainda sobre reencarnação e outras crenças espíritas. Apenas peço que haja abertura para se acolher o outro como ele é e pensa. 

É claro que quando dialogo, devo ser eu e não preciso deixar a minha identidade para assumir a do outro. Foi isso que fiz. Infelizmente, pessoas de espírito proselitista andam espalhando coisas que não correspondem à verdade. Antes de tudo, não represento oficialmente a Igreja Católica e o fato de eu assinar o prefácio de um livro não compromete nisso toda a minha Igreja. Em segundo lugar, não é verdade que eu tenha em nenhum momento declarado que acredito na reencarnação ou na psicografia. 

Vejam o prefácio que escrevi: 

A luz que vem do outro

(Prefácio ao livro de Carlos Pereira)

Todo livro é um diálogo entre quem escreve e quem lê. Entretanto, este que, agora, você tem nas mãos é, certamente mais ainda uma proposta espiritual de diálogo porque o autor o apresenta como um livro psicografado. De acordo com ele, tem um autor espiritual que é Dom Helder Câmara e este o ditou ao irmão Carlos Pereira, que, no caso seria apenas um fiel intérprete e obediente escrivão destas páginas do Dom.

Prefaciar um livro é referendá-lo e aceitar ser para o autor como um paraninfo que o introduz em um novo círculo de relações. Normalmente quem faz o prefácio é sempre um autor mais famoso e consagrado que apresenta aos leitores um outro que precisa ser apresentado. Ao pensar que o autor deste livro é meu mestre e pastor Dom Helder Câmara, senti-me incapacitado de escrever um prefácio para esta obra. Entretanto, o irmão Carlos Pereira me pediu e ele deve saber o que está fazendo. Quando o mistério é grande demais, o jeito é deixar-se envolver por seu encanto e buscar espiritualmente a lição que Deus nos dá através do desconhecido. A realidade tem sempre diversas faces e epifanias. O mesmo fato pode ser visto e interpretado, ao menos, por dois ou mais lados. O Judaísmo acredita que tudo na Bíblia, até a lei divina, é passível de interpretações divergentes. Conforme a tradição judaica, um dia, um discípulo perguntou a um santo rabino porque, no monte Sinai, para escrever sua lei, Deus precisou de duas tábuas de pedra e não só de uma única. O rabino respondeu:

- Para que se saiba que há, ao menos, duas interpretações válidas para cada lei.

Quem, em sua fé, aceita o fenômeno da psicografia, não procura provas nem busca semelhanças entre este escrito e as muitas obras que, no tempo em que estava conosco, o Dom nos deixou. Acolhe simplesmente e gratuitamente esta obra e aproveita as lições espirituais aqui contidas. Quem rejeita tal interpretação e não crê em psicografia pode, assim mesmo, ler este livro como herança espiritual de Dom Helder, pois se situa na mesma tradição da espiritualidade da paz, da não violência e da solidariedade que o Dom sempre nos ensinou.

Em 1994, Dom Helder escrevia a amigos da Itália, reunidos no movimento Mani Tese (“Mãos estendidas”): “Não estamos sós. Por isso, não aceito a resignação e o desespero. A fome será vencida. No final, haverá paz para todos. Neste universo, a última palavra nunca poderá ser a morte e sim a vida! Não poderá ser o ódio, mas o amor! Não poderá ser o desespero, mas a esperança. Nunca as mãos enrijecidas, fechadas no ódio. Mãos estendidas e unidas na solidariedade e no amor para com todos”.

Aqui, nestas páginas o estilo e o conteúdo mais expresso podem parecer diferentes do que Dom Helder escrevia, assim como os destinatários desta obra não são mais apenas os que o escutavam em sua peregrinação terrena. Dom Helder sempre insistiu que a unidade não só respeita as diferenças, mas pode delas nutrir-se. O amor pode transformar as diferenças em complementaridade. Para ele, o Diálogo é elemento intrínseco e essencial a toda religião e nos faz repensar nossa idéia de Deus e de espiritualidade. Por isso, ser solidário é o modo normal da pessoa viver no mundo e ser feliz, como dizia o monge Thomas Merton:  “Nenhum ser humano é uma ilha”. É a base mais viável para construirmos sociedades firmadas sobre a defesa intransigente e permanente dos Direitos Humanos. Somos felizes por viver em um mundo, no qual estes caminhos nos são abertos.

Para mim que quero consagrar-me e doar a minha vida a esta causa do diálogo e da unidade entre os diferentes, este livro me toca porque, lendo além das linhas e entre-linhas, sinto como se a sabedoria aqui transcrita, não vem apenas de Dom Helder e menos ainda do Carlos Pereira. São inspirações do Espírito Divino, energia de paz, que “sopra onde quer, ouve-se a sua voz, mas não sabe para onde vai nem para onde vem” (Jo 3, 7ss). A mim, cristão, cada página, aqui transcrita por Carlos, sussurra um nome que me leva ao Infinito: Jesus de Nazaré. Mas, me leva também a outros nomes que são sinônimos de amor e de paz, nas mais diferentes religiões e diversas culturas: Confúcio, Buda, Maomé, Zumbi dos Palmares, Maíra. Que riqueza. Nenhum mortal pode amordaçar a ventania.  O mistério é nossa Paz e os caminhos religiosos, se conseguem sê-lo, podem apenas ser nossas parábolas de amor. Como, no século IV, escreveu Agostinho: “Apontem-me alguém que ame e ele sente o que estou dizendo. Dêem-me alguém que deseje, que caminhe neste deserto, alguém que tenha sede e suspira pela fonte da vida. Mostre-me esta pessoa e ela saberá o que quero dizer” [2]. 

Marcelo Barros


[1] - Marcelo Barros, natural de Camaragibe, é monge beneditino e teólogo. Durante nove anos (de 1966 a 1975) foi secretário de Dom Helder para a relação ecumênica com as Igrejas cristãs e as outras religiões. É escritor e tem 40 livros publicados.

[2] - AGOSTINHO, Tratado sobre o Evangelho de João 26, 4. Cit. por Connaissance des Pères de l’Église32- dez. 1988, capa.

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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