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Palavras que falarei na celebração ecumênica dos 50 anos de minha ordenação presbiteral

“Tendo amado os seus e as suas que estavam no mundo, amou-os/as até o fim” (Jo 13, 1). 

Queridos irmãos e irmãs,

Nesses 50 anos, o meu ministério presbiteral se deu na Igreja. A Igreja na qual fui ordenado em 1969 vivia o tempo imediatamente depois do Vaticano II e aqui na América Latina um ano depois da conferência de Medellin. Era uma Igreja que, tanto no ponto de vista interno de sua organização, como no seu modo de viver a missão tinha conflitos e enfrentava dificuldades mas me parece que era mais aberta e mais leve do que hoje, mesmo nesses tempos do papa Francisco. 

Mas, nesse sentido, o clima na Igreja infelizmente não é diferente do clima no mundo. Na sociedade, também parece que apesar de todas as ditaduras militares que tínhamos na América Latina e a guerra fria que dominava o mundo no final dos anos 60, olhando hoje o mundo daquela época, apesar de tudo, ele também parece melhor do que o mundo atual. (Sem negar o positivo de tantos aspectos, como o progresso das ciências, um aumento da consciência social sobre muitos problemas como o racismo, a igualdade de gêneros e a justiça social e ecológica). Mas, apesar disso, a violência estrutural da sociedade, as desigualdades sociais e o poder dominante parecem mais duros e difíceis de serem vencidos.   

Uma característica do meu ministério nesses 50 anos é que exerci o ministério sempre nesse redemoinho do mundo. Em geral os monges que são padres exercem o ministério celebrando missas para ajudar os párocos e quando muito assumindo alguma paróquia. Eu antes de ser ordenado padre fui chamado para compor a coordenação da Pastoral da Juventude secundarista no Recife depois do assassinato do padre Henrique. Ele foi morto no fim de maio. Eu fui ordenado em outubro. E mesmo na minha missão ecumênica, tive desde o começo de me inserir em atividades políticas como visitar presos políticos, formar uma equipe ecumênica para conseguir advogados, etc... E poucos anos depois de ordenado, já entrei na Pastoral da Terra que estava começando e era o epicentro de uma violência muito grande que atingia o conflito do campo e que me fez ter o triste ou pesado destino de ser companheiro de vários mártires. Fui companheiro na CPT do padre Josimo Tavares, do padre Ezequiel Ramin e mesmo assessorei cursos de Bíblia dos quais fazia parte a irmã Dorothy Stang. 

Muita gente fez parte do meu ministério. Companheiros e companheiras do CEBI, da CPT, da Rede Celebra e de outros organismos ecumênicos dos quais participo. Peço permissão aos vivos para citar como representante de todos eles e elas, o querido Dom Pedro Casaldáliga que resiste e os que não estão mais aqui conosco Dom Tomás Balduíno e Dom José Maria Pires, com os quais convivi e com os quais aprendi a viver o testemunho do reino de Deus como subversão social e política nessa sociedade de injustiças. Do mesmo modo, entre as irmãs e amigas vivas cito Ivone Gebara e a irmã Escobar. Das que agora me fazem falta, penso na irmã Agostinha Vieira de Mello e a irmã Maria Letícia. E é claro: meus pais. Agradeço a Deus o fato de que meus pais e irmãos me revelaram a dignidade da pobreza. Com eles, aprendi a viver como pobre. Agora, com 75 anos de idade não tenho casa, não tenho carro, nem dinheiro acumulado. Tudo o que tenho de material é um computador portátil e um celular, ambos dados de presente. 

Ao olhar para trás, me deparo com muitos dos defeitos ainda não vencidos, muitas infidelidades e pecados.  Mas acima de tudo a graça de Deus conduzindo tudo. Desde o começo, ele conduziu meu ministério de presbítero em duas direções principais: 

1 – o diálogo com as outras Igrejas e outras religiões, especialmente as religiões originárias dos nossos povos, diálogo a serviço da Vida e da unidade e libertação de toda a humanidade. 

2 – fazer isso a partir dos mais pobres e excluídos da sociedade nos quais contemplo de forma especial o rosto de Deus na minha vida. 

Até aqui Deus tem me dado a graça de viver isso através de uma presença de amizade, de acompanhamento como assessor do MST e de alguns movimentos sociais e através desse ministério do escrever que poderia parecer um vício (viciado em escrever) mas que tem como justificativa que é o modo de me relacionar, me comunicar afetuosamente com as pessoas e os grupos. 

Na missa da minha ordenação presbiteral, Dom Helder Camara, em sua homilia, propôs a mim e ao irmão Beda que se ordenou comigo que nós fôssemos presbíteros para despertar em todas as pessoas o exercício concreto e profundo do sacerdócio batismal que todos receberam. Por isso, nunca aceitei me chamar de “sacerdote”. Sou presbítero para ajudar a todos e todas os irmãos e irmãos pelo batismo a serem sacerdotes do Amor Divino no mundo. 

Nesses 50 anos de padre, uma palavra do evangelho que me interpela sempre é a palavra de João Batista: “Sou apenas o amigo do esposo. O que eu quero é que ele cresça e eu diminua”. No entanto, nesses anos mais recentes, tenho sido muito tomado pela palavra do evangelho de João que, no lugar da instituição da ceia, conta o lava-pés. Sempre se fala do lava-pés como serviço, o serviço do escravo mais humilde... Mas, em toda a Bíblia esse gesto não aparece. Não fazia parte da cultura da sociedade de Jesus, tanto que Pedro confunde com o gesto das abluções... Só no evangelho de Lucas aparece a mulher pecadora que lava os pés de Jesus com suas lágrimas e os enxuga com seus cabelos. E também o que o quarto evangelho conta que Maria, irmã de Lázaro, unge os pés de Jesus com perfume de nardo caríssimo e os enxuga com seus cabelos. Ambas as cenas interpretadas por Jesus como em Lucas o gesto de maior amor e em João profecia da ressurreição. O lava-pés que Jesus fez também é esse gesto de amor maior. O relato começa: Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim, isso é, amou-os até onde o amor pode ir... E todo o discurso de Jesus após a ceia tem como centralidade esse mandamento novo do amor e da predileção de Jesus. E isso na hora em que ele mesmo percebe que Judas sai para trai-lo e que Pedro o negará. E todos os discípulos o deixarão sozinho. Só as mulheres o acompanharão até a cruz. Mesmo assim ele faz esse gesto. Nesses dias, no Sínodo sobre a Amazônia em Roma, se falou muito em uma Igreja de avental... Uma Igreja que assuma mesmo o avental de servidora. Nesse sentido a renovação do Pacto das Catacumbas por mais de 200 bispos, além de missionários e missionárias atualiza o lava-pés como serviço de amor e amor de predileção aos povos indígenas, aos lavradores, aos quilombolas e a todos os excluídos e excluídas do mundo. 

Como esse documento é aberto e nos convida a também fazer esse pacto, hoje, estou lançando aqui a proposta de um Pacto das Fronteiras. Um compromisso que, em nome de Dom Helder, nosso patrono, na Igreja de Olinda e Recife seja um testemunho de amor de predileção pelos pequenos do mundo e pela proteção da vida no planeta.  Vamos ler um resumo desse documento e saber que esse resumo deverá ser completado e retrabalhado por nós e em um processo que terá como data simbólica a celebração que faremos aqui no sábado 16 de novembro mas que irá conosco como construção de compromisso até o Congresso Eucarístico que se celebrará no Recife e que justamente se concluirá na véspera do 16 de novembro de 2020. 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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