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O gerente sabido

A dimensão política das relações de amizade

(Acumulem amigos e não dinheiro)

Nesse domingo, o evangelho nos faz ouvir uma palavra de Jesus que pode provocar interpretação equivocada nos ambientes atuais. Em um mundo capitalista no qual a corrupção é endêmica e estrutural ao sistema, uma leitura ao pé da letra do evangelho nos diria que “O Senhor elogia o administrador desonesto”. Além do fato de que o discurso da corrupção é sempre usado para justificar golpes e ataques da direita (que em si sempre congrega os mais corruptos de todos), é difícil compreender como Jesus poderia defender um gerente que rouba o patrão para favorecer amigos e assim ter quem o acolhesse quando ele fosse demitido. 

Para compreender a parábola de Jesus temos de situá-la no contexto histórico e social do mundo antigo no Oriente Médio.  A parábola do “administrador astuto” que usa do dinheiro do proprietário para fazer amigos é própria à comunidade de Lucas e não parece ter correspondente em outras tradições espirituais. Alguns comentadores mais atentos à história da Palestina naquela época dizem que os patrões (o tal senhor) moravam na Judéia e os administradores (tipo de capataz) regulavam todos os seus negócios. Costumavam cobrar as dívidas dos arrendatários e meeiros nas terras do patrão. Para cada dívida, sempre cobravam 15, 20 ou até 25% a mais como sua cota pessoal na dívida. Dizem esses historiadores que foi a essa parte da dívida que o tal gerente renunciou e mandou os devedores do patrão cancelar. O patrão o elogiou porque ele soube agir com esperteza.  Se a realidade contada por Jesus na parábola, o tal gerente não foi em si desonesto. Foi esperto, astuto, já que o patrão não foi roubado. Se tivesse sido, não iria elogiar o administrador astuto. 

Vocês podiam perguntar: Se foi assim, por que Jesus não explicou melhor isso? De propósito, deixou o ambiente de dúvida e a possibilidade do mau entendido? Claro que ele não estava falando ao mundo de hoje, com nossas regras e nossa mentalidade atual. Ele falou ao mundo de sua época, mas mesmo assim, parece não ligar muito ao que era a ética do patrão. Ele (Jesus) tem outra ética e não disfarça isso. Dá a impressão de que não está nem um pouco preocupado em explicar se, de fato, o administrador foi honesto, ou desonesto. 

Provavelmente essa história do administrador “esperto” tinha ocorrido na realidade e era conhecida na época de Jesus. Ele tira uma lição de vida do fato ocorrido que ele não inventou. E a lição é que o patrão elogiou não a esperteza do administrador, ou seja, sua capacidade de se sair bem de uma situação complicada. De fato, ao saber que iria ser despedido, ele conquista devedores do seu patrão como amigos. Jesus não aconselha que a gente repita o que aquele homem fez. Ao contrário. No evangelho, Jesus até chega a chamar esse tipo de ação de “atitude dos filhos das trevas ou de cidadãos do mundo”. O que ele diz aos discípulos é outra coisa: por que vocês não são tão espertos para as coisas do reino de Deus, como os do mundo são espertos para o que não presta?

Jesus até diz que devemos ser tão espertos e sabidos no uso da riqueza como os filhos das trevas. Só não devemos nos deixar enfeitiçar pelo encanto das riquezas. O dinheiro é chamado com o nome de uma divindade fenícia mammona. Chamando-o assim, Jesus está dizendo que o dinheiro é comumente um ídolo. Mas, não é para ser rejeitado e sim usado a serviço da amizade. Uma tradução nova e talvez mais fiel à linguagem original diz no versículo 9: “Acumulem amigos e não riquezas”. 

O importante me parece é que Jesus chama os discípulos e discípulas a se inserirem no mundo real e não a se distanciar dele como os grupos espiritualistas que consideram o engajamento como mau. Esse evangelho nos lembra que, nesses dias, o papa Francisco está preparando um encontro em Assis, (março 2020), com economistas jovens de todo o mundo que se disponham a pensar um modelo diferente de economia que se baseie na justiça, respeite a vida e cuide da ecologia integral. 

Monges medievais como Elredo de Rievaulx escreveram uma “teologia da amizade”. Deixaram claro que irmãos somos de todos (a fraternidade é universal), mas amigos, a gente escolhe e tem de escolher bem e com toda liberdade. Ninguém é obrigado a ser amigo de ninguém. Mas, é muito importante para a vida e para a fraternidade universal essa capacidade de ser amigos (tem gente que não adquire isso) e ser amigos fieis. E toda a nossa forma de viver as relações sociais e políticas mais amplas é transformada e moldada pelas relações de amizade. Não no sentido do “para os amigos, tudo; para os outros, a lei e para os adversários, pancada”.  Não nesse sentido. No sentido da abertura que tão bem a chilena Violeta Parra cantou: “Gracias à la Vida que me ha dado tanto”.

Traduzindo em nossas palavras, poderíamos dizer: “A vida me deu teus olhos que me ensinam a ver com o amor com o qual te olho os olhos de todas as outras pessoas. Me deu teu ouvido para que eu possa ouvir e amar  teus passos, mas assim eu aprendo também a ouvir e acolher amorosamente os passos de todas as pessoas que de mim se aproximam”. Violeta fez isso em seus últimos dias de vida por um rapaz jovem pelo qual ela já com seus mais de 50 havia se apaixonado. Penso que a proposta de Jesus é que a gente viva o amor apaixonado dessa forma mais aberta a aprender o amor como estrada da vida comum e sem confundir um com o outro, mas possa alargar o amor apaixonado ao amor generoso e como dizia em seu romance Mário de Andrade: amar, verbo intransitivo. Ou seja, faça de nós pessoas de amor. Ponto. Ou pessoas de amizade. 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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