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Nossa vocação para o martírio

Nossa vocação para o martírio

                Neste XXII domingo comum do ano, o evangelho traz a continuidade da cena que já vimos no domingo passado, quando Jesus faz com os discípulos a revisão sobre sua missão e Pedro proclama quem é Jesus para ele e para os outros discípulos. Neste trecho lido, hoje, Mateus 16, 21- 27, a gente compreende melhor porque Jesus tinha proibido Pedro e os discípulos dizerem que ele é o Messias, o Cristo (v. 21). 

Pedro reconhece Jesus como Messias, mas a concepção que ele tem da sua missão é a de um enviado de Deus que virá ao mundo com poder para exercer sua função libertadora. Jesus sabe o que aconteceu com o profeta João Batista que ele mesmo quis substituir em sua missão. Jesus vê como a elite religiosa reage ao fato dele dar os sinais do reino de Deus, sem precisar da religião, sem depender do sacerdote e sem cobrar nada de ninguém. Era mesmo um homem perigoso, que tirava o ganha-pão dos sacerdotes do templo. Padres ricos de determinados templos de Jerusalém de hoje justificam o fato de ganharem milhões e milhões de reais vindos de fieis pobres. Segundo eles, o dinheiro é necessário para as suas “obras de evangelização”. Pior do que a Teologia da Prosperidade de alguns grupos neopentecostais, porque é mais mascarada, parece mais erudita e ancorada em uma Igreja tradicional. No evangelho de hoje, Jesus rejeita como tentação do diabo qualquer meio de evangelização que não seja o serviço despojado e a cruz.  

Pensemos em um profeta e pastor como Pedro Casaldáliga. Nunca na vida usou paramentos solenes. Nunca teve carro, casa própria ou bens. Não só nunca pediu dinheiro a ninguém, como nunca aceitou para si nem para a Igreja bens que a identificassem como proprietária. Em toda a sua vida sempre foi para muita gente referência do Evangelho. Como vendilhões do templo podem reagir a profetas da Igreja dos pobres? 

No seu caso, Jesus sabia o que lhe era reservado se ele enfrentasse diretamente à religião alienada e opressora. Por isso, avisou aos discípulos o que iria lhe suceder. Os evangelhos contêm três avisos de Jesus sobre a paixão e a ressurreição. O evangelho de hoje contém o primeiro aviso. Ao ouvi-lo, Pedro reage forte: Isso não pode te acontecer, Senhor! Para Jesus, a posição que Pedro toma é uma tentação. Pedro propõe testemunhar o reino a partir do poder religioso e não a partir da marginalidade e da cruz. É hoje a opção de muitos cristãos e pastores em nossa Igreja e em outras. Jesus teve de escolher e compreendeu que este caminho não seria fidelidade ao reino. Desde a criação, o Deus de Jesus sempre aceitou diminuir para o outro ser.  Sempre desceu às casas da servidão no mundo para que os oprimidos possam subir. Viveu o exílio com o seu povo. E o fez nascer em um presépio, como poetiza as Igrejas no Oriente: presépio já feito com madeira da Cruz. 

Este é o Deus que Jesus quer testemunhar e não outro. Por isso, ele tem de dizer a Pedro a mesma palavra que disse ao diabo em uma de suas horas de deserto: Passa para trás Satanás. O Satanás da vida dele agora era seu amigo e companheiro, um apóstolo: Passa para trás,  porque tu me fazes retroceder no caminho da profecia... E acrescenta: Quem quiser me seguir tome a cruz de sua missão e venha atrás de mim, no seguimento como discípulo, discípula e não como quem retrocede. 

Este apelo: “Quem quiser me seguir, tome sua cruz e me siga” não pode ser compreendido como se se referisse a aceitar os sofrimentos da vida. Tomar cada um/uma a sua cruz é assumir o caminho do martírio, isso é, do testemunho como Jesus e aí sim, assumir as dores, problemas e conflitos que a missão do testemunho do reino provoca. 

Na América Latina são mais de 30 mil irmãos e irmãs, mártires da caminhada, pessoas de Igreja e algumas outras que nem eram cristãs e deram a vida pelo testemunho do projeto divino da paz e da justiça no mundo. Hoje, Jesus nos chama para vivermos a fé como martírio, testemunho do reinado divino no mundo, como estilo de vida e modo de viver a fé. O que muda na nossa forma de viver a fé pelo fato de abandonarmos uma visão sacrificial da paixão de Jesus e portanto também da eucaristia e assumirmos esta perspectiva evangélica do martírio? 

Deixo esta pergunta com vocês, mas posso dizer que ela mudou profundamente a minha forma de viver e expressar a espiritualidade. Mudou o modo como me sinto chamado ao seguimento de Jesus no mundo dos pobres. Hoje finalizo minha meditação com este poema do nosso querido e saudoso Pedro Casaldáliga: 

No oco de nossa breve lama, 

O mar sem nome, de sua luz não sabe, 

Nenhuma língua a sua verdade se atreve, 

Ninguém viu Deus, ninguém o sabe. 

Maior que todo Deus, nossa sede busca, 

Faz-se menor que o livro e a utopia, 

E quando o templo, em seu esplendor, o ofusca, 

Rompe como criança, no ventre de Maria. 

O Unigênito, vindo até o menos, 

Transpõe toda a distância em um só gemido, 

Cala assim a glória e o Amor explana.

Suas mãos e seus pés, de terra cheios, 

Rosto de carne e Sol do Escondido. 

Versão de Deus em pequenez humana. 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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