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Artigo semanal, sábado, 13 de junho 2015

O espírito do mundo

A luta pela igualdade de direitos e reconhecimento da dignidade de todas as pessoas humanas atravessa os séculos. No entanto, nos termos atuais, começou há mais de 200 anos, com a Revolução Francesa. Ali a maior parte da sociedade ocidental passou a pensar: a monarquia não é a única forma de governo possível. Com todos os seus defeitos, a democracia republicana pode ser mais respeitosa da igualdade humana. Desde então, houve uma série de conquistas sociais.

 Entre essas, a liberdade de expressão, o direito à liberdade religiosa e direito ao voto por parte de todos, homens e mulheres, pobres e ricos. No século XX, a luta pelos direitos sociais conquistou, ao menos, em termos de lei, a igualdade entre homem e mulher, a consciência dos direitos da criança, a superação da discriminação racial e outras conquistas. É claro que muitos desses direitos ainda não estão garantidos. Alguns são apenas esboçados, como o direito às diferenças culturais, religiosas e sexuais. Para que tais conquistas possam ter ocorrido, tem sido importante uma evolução da cultura. Trata-se de uma mudança do pensamento que, no século XIX, Hegel chamava de “o espírito do mundo”. Ele dizia que nós não somos donos das nossas ideias. São as ideias que entram em nós e aí elas têm um poder transformador. A luta pelas ideias está na base das grandes lutas emancipatórias da sociedade.

Hoje, o termo “espírito do mundo” pode ressoar, erroneamente, como “espírito mundano”. Na acepção de Hegel, o  “espírito do mundo” não é o pensamento da elite, nem se reduz simplesmente a opinião pública. A massa pode ser manobrada por vários fatores (como os meios de comunicação) e tende a ser conservadora. Nos tempos antigos, as massas apoiaram a escravidão e o racismo. Hoje, no Brasil, a maioria do povo votaria pela pena de morte, pelo uso de armas de fogo e a favor de torturar bandidos. Para encontrar o que Hegel chama de “espírito do mundo”, temos de buscar os grupos sociais organizados, a partir das lutas pelos direitos humanos e pela dignidade dos oprimidos. São os movimentos sociais e as comunidades humanas de base que formam o povo mais consciente de ser povo. No mundo romano antigo, o latim fazia a distinção entre plebs (massa) e populus (povo organizado). O Concílio Vaticano II define que a Igreja é uma porção do povo de Deus (populus Dei). Ou, ao menos deve ser comunidades inseridas na realidade do povo organizado e com consciência de ser povo.

No século XIX, Hegel falava em um “espírito objetivo” que teria a prioridade sobre “o espírito subjetivo”. Atualmente, isso também começa a mudar. Não é mais a sociedade que se impõe ao indivíduo. Não é esse que teria de adequar-se às instituições sociais. Ao contrário, a sociedade deve adaptar-se a cada pessoa para, a partir da sua liberdade pessoal, integrá-la no conjunto social. Não se trata do mero individualismo capitalista. Fábio Konder Comparato afirma: “o Capitalismo é o primeiro sistema que colocou o indivíduo acima do bem comum”. No entanto, esse sistema fez isso reduzindo as pessoas a meras peças na linha da produção e do consumo. A sociedade capitalista não somente desrespeita os direitos e a dignidade das pessoas, mas cria a cultura da indiferença em relação ao sofrimento dos migrantes, das vítimas de guerra e dos excluídos do mundo. Por outro lado, se a cultura capitalista, ao menos, contribuiu para uma maior consciência da inviolabilidade de cada pessoa humana, foi porque as Igrejas e os movimentos sociais não foram capazes disso. Infelizmente, na história, muitas vezes, Igrejas e religiões foram contrárias aos grandes movimentos de libertação e promoção humana. Nos séculos passados, muitos pastores e ministros cristãos defenderam a monarquia contra a república, a superioridade masculina contra a igualdade de gêneros e se pronunciaram claramente contra a liberdade de expressão e mesmo de religião. Atualmente, em todo o mundo, pastores e ministros entram na cruzada contra os direitos à diversidade sexual. Na Igreja Católica, bispos e fiéis manifestaram espanto quando, há alguns meses, o papa Francisco recebeu um transexual em audiência no Vaticano. E entre quarto paredes, não são poucos os padres, até jovens, que murmuram: “Se ele diz: ‘quem sou eu para julgar?’, por que, então, é papa?  

Há poucos dias, na Irlanda, país de maioria católica, no referendo sobre a diversidade sexual, 61% do povo votou para que se reconhecessem os direitos civis da união gay. Alguns dias antes, o episcopado católico tinha publicado uma nota na qual pedia aos fiéis  para votarem contra. Depois da eleição, o arcebispo de Dublin declarou: “A maioria dos que votaram pelo sim são católicos. A Igreja deve aprender com isso e ser capaz de dialogar com essa realidade”. 

O que estava por trás era mais do que o reconhecimento da dignidade dos gays. Era o direito que toda pessoa humana tem a ser feliz e a viver o que na Irlanda passou a se chamar “amor integral”. A Igreja deve ser testemunha de que todos os seres humanos têm direito ao amor integral  e que toda relação de amor é sacramento do amor divino no mundo. Jesus afirmou: “O sábado foi feito para o ser humano e não o homem para o sábado”. Portanto, as leis religiosas, mesmo as mais sagradas, devem servir à vida e à felicidade das pessoas. Ao afirmar isso, Jesus enfrenta a tensão entre pessoa e sociedade. Claramente, optou pelas pessoas: a mulher adúltera que a religião do templo mandava apedrejar, os pecadores públicos que eram discriminados e assim por diante. Paulo escreveu: “Onde está o Espírito Divino, aí há liberdade” (2 Cor 3, 17).

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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